segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Entrevista inédita de Jango expõe sua opinião sobre o golpe militar de 1964


O ex-presidente João Belchior Marques Goulart via sua queda no golpe de Estado de 1964 como resultado de uma campanha de "envenenamento" da opinião pública contra o seu governo. "Meu maior crime foi tentar combater a ignorância", dizia ele.
Para Jango, criou-se uma confusão entre justiça social (que ele disse ter buscado) e comunismo (que não compartilhava), e que após o assassinato do presidente americano John Kennedy, em 1963, os EUA começaram a derrubar governos constitucionais na América Latina, entre os quais o dele.
Três anos e sete meses depois de deixar o país, era assim que Jango via o painel da crise que o depôs.
A Folha encontrou na Universidade do Texas uma entrevista inédita do ex-presidente feita pelo historiador americano John W. Foster Dulles (1913-2008). O depoimento, realizado em 15 de novembro de 1967 em Montevidéu, permaneceu desconhecido desde então.

Divulgação
O ex-presidente João Goulart no exílio no Uruguai, em cena do documentário 'Dossiê Jango', de Paulo Fontenelle
João Goulart no exílio no Uruguai, em cena do documentário 'Dossiê Jango', de Paulo Fontenelle
Foster Dulles não a utilizou nos livros que escreveu sobre o Brasil ou personagens brasileiros, como Castello Branco e Carlos Lacerda. O historiador Jorge Ferreira, autor de uma biografia de Jango, disse desconhecer a entrevista. O mesmo foi dito por João Vicente Goulart, filho e responsável pelo instituto que leva o nome do ex-presidente.
Filho e sobrinho de dois dos americanos mais influentes do século 20, que ajudaram a moldar o poder dos EUA, o historiador Foster Dulles contou com a influência familiar para se encontrar no Brasil e no exterior com os principais personagens do golpe de 1964. A biblioteca Nettie Lee Benson, da Universidade do Texas, onde o americano lecionou, guarda as centenas de entrevistas realizadas por ele.
No encontro com João Goulart, segundo o relato de Dulles, o ex-presidente comentou a influência dos EUA e o antiamericanismo no Brasil.
"Não há no Brasil um sentimento contra o povo dos EUA", disse. "O Brasil quer que a América Latina tenha independência em suas discussões, o país quer que os brasileiros, e isso inclui as classes populares, comandem o próprio destino. O país às vezes sente que há um excesso de interferência dos EUA, que falam muito em democracia, mas deveriam permitir a democracia."
Jango creditou sua queda e a de governos democráticos na região, como Argentina e Bolívia, à influência de Lyndon Johnson, presidente que assumiu a Casa Branca após o assassinato de Kennedy.
A visão do ex-presidente não era correta, mas ele não viveria para ver as revelações sobre a participação americana no golpe: Johnson apenas seguiu o script planejado pelo antecessor, que teve relação amistosa com o brasileiro enquanto eram presidentes.
Sobre o envenenamento da opinião pública, Jango relembrou a feroz posição da imprensa contra o seu governo. "As pessoas na América Latina não são inclinadas ao comunismo. Justiça social não é algo marxista ou comunista", ressaltou.
O ex-presidente alegou ter feito " grandes concessões a grupos políticos" para promover as reformas de base, uma de suas bandeiras, sem sucesso. À época, seu governo não conseguiu aprovar as reformas, como a agrária, num Congresso de maioria conservadora. "Eram reformas a favor da independência, do desenvolvimento, do bem-estar e da justiça social."
Como reconheceu, a lei que regulamentou a remessa de lucros de empresas estrangeiras "causou grande perturbação ao governo". "As companhias estrangeiras estavam preocupadas. Quando o capital estrangeiro entra e sai, não há vantagem para o Brasil. Ao contrário, esse capital prejudica. Todo capital estrangeiro deveria ser bem-vindo se colaborasse com o desenvolvimento do país."
Conforme registrado por Foster Dulles, Jango não queria que as declarações fossem atribuídas a ele, tratando-se apenas de "sentimentos pessoais", para ajudá-lo a compreender o Brasil.
O presidente deposto lembrou que o golpe ceifou a oportunidade de o Brasil dar "um grande impulso para o processo democrático" na América Latina. E ainda citou, ao que parece se referindo ao clima político de sua queda, que "o excesso de liberdade é ruim, mas o excesso de oposição também é ruim".